Fosse Wendel uruguaio...


Em horas assim, sempre me vem à cabeça dois parágrafos do inesquecível texto do historiador e jornalista Lúcio de Castro, "20 anos de desrespeito ao ECA criou bichos no futebol":

"Já vamos longe, mas é isso mesmo. Tudo isso para dizer que é inadmissível uma estrutura que permite a proliferação de criadouros. Que é inadmissível que entidades do esporte sejam cúmplices e agentes da repetição do crime de que meninos sigam sem estudos, sem condições, longe dos pais, da família. O fato de terem se transformado em bichos não pode surpreender. O que assusta é que estruturas assim se proliferem sob o silêncio cúmplice de todos nós. E a cumplicidade criminosa das entidades que poderiam responder por isso".

"Poderíamos seguir enumerando artigos do ECA desrespeitados. Bastaria o cumprimento do ECA para mudar esse quadro. Acima até das leis da FIFA. O silêncio e desconhecimento da sociedade e o sórdido desprezo das nossas entidades esportivas respondem por gente tratada como bicho nos seus anos de formação. Que ninguém fique chocado depois, quando os bichos aparecem". Agora palavras minhas, ou morrem.

Porque o menino Wendel, 14 anos, era apenas mais um "bicho" para o futebol brasileiro. O Vasco, seu potencial criadouro. Mas não precisa ficar chateado comigo, cruzmaltino. Há outros criadouros espalhados pelo país. Pelo mundo. Em especial, em sua porção sub-desenvolvida.

Parece uma dessas peças que os destino adora pregar. Melhor, uma dessas tristes lições que ele tenta nos ensinar.

Na noite anterior à tragédia, o Vasco perdera para o Nacional, em sua estreia na Libertadores. E não era um Nacional qualquer. Era o do Uruguai. Pátria de Oscar Tabárez.

Sim, serei repetitivo. Lembrarei de um pedaço de outro texto do Lúcio de Castro, que volta e meia costumo citar, através do qual conheci o brilhante trabalho do treinador da Celeste com os jovens boleiros de seu país:

"era diferente aquele Uruguai que tanto me chamava a atenção. De um “maestro” e líder, o simpático Oscar Tabárez, capaz de discorrer sobre botânica, história, política e filosofia em um papo, além de deliciosas histórias sobre o futebol de ontem e hoje. Assim que assumiu, mudou o rumo da história dos seus comandados. Estudar era preciso, e em cada seleção de base, os meninos eram incentivados e as condições para tal eram criadas. Muito diferente do cenário brasileiro, onde os bichos são confinados em alojamentos por meses, anos, saindo, tal e qual bichos mesmo, apenas para treinamentos. A mente sendo deixada atrofiada...E depois não entendem minha revolta quando vejo o cara sendo criticado porque virou um bicho, quando faz bobagem, e não o sistema que criou esses bichos..."

Fosse uruguaio, Wendel provavelmente não estaria longe dos pais, da família, do interior de Minas, abandonado em uma casa no desconhecido Rio de Janeiro.

Fosse uruguaio, Wendel provavelmente teria realizado refeições decentes em sua estadia na cidade que nem sempre é maravilhosa.

Fosse uruguaio, Wendel provavelmente contaria com atendimento (de um) médico imediato quando se sentisse mal.

Fosse uruguaio, Wendel provavelmente seria um cidadão consciente, mesmo que sua carreira não seguisse adiante.

Fosse Wendel uruguaio, eu não teria escrito esse post.

Fosse Wendel uruguaio...

Abraço.